Irene Lisboa: Um dos grandes enigmas da literatura portuguesa
03-03-2019 às 10:37
Toma lá que te dou eu,
rapariga da fortuna,
uma mão cheia de nada,
outra de coisa nenhuma.
(Popular)
Como já se disse em números anteriores deste jornal, Irene Lisboa nasceu no dia 25 de dezembro de 1892 no Casal da Murzinheira, concelho de Arruda dos Vinhos. Anos mais tarde, já quase no fim da sua vida, em 1955, publicou Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma, livro composto por 26 contos onde se insere o texto que agora propomos analisar: “O caixão de cristal” (ver sibilante.blogs.sapo.pt). Este texto foi anteriormente inserido na obra 13 Contarelos (1926), ao qual Irene Lisboa chamou Número 13, número curioso na simbologia, assim como é curioso ser este o texto número treze, tendo em conta a temática abordada. Apesar do livro ser destinado às camadas jovens, este conto requer uma reflexão complexa, pois leva-nos a um imaginário ligado à morte, que dificilmente pode ser compreendido por um público mais jovem, mas, como ela disse algures, tentemos.
Irene Lisboa é um dos grandes enigmas da literatura do século XX, de quem José Gomes Ferreira disse ser a maior escritora de todos os tempos, mas pouco lida pelo público, apesar do tempo que já passou após a sua morte (60 anos) e de ter sido apreciada por grandes críticos, investigadores, poetas e escritores (ver, por exemplo, a revista Relâmpago, 2012, 2013).
Uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma é uma obra que apresenta, na globalidade dos seus textos, um narrador autodiegético, feminino, em que o recurso ao registo oral é uma constante, observado sobretudo através das repetições e interrogações, bem como de um discurso direto aparentemente descuidado, mas que se revela de uma profundidade simbólica intensa.
Os diálogos aí apresentados são pois testemunho dessa aparente desordem e da busca constante pela oralidade, bem como os percursos profundos e constantes por aquilo que é comum, quotidiano, frágil, fragmentário, apresentado num registo em que o imaginário entra numa certa inocência e independência subjetivas, muitas vezes encontradas apenas no registo lírico, aqui transposto para o modo narrativo. Estes diálogos não apresentam os traços comuns deste tipo de discurso (sem os dois pontos e o travessão inicial). Esta espécie de subversão do discurso direto não deixa de ser um traço estilístico inovador para a época. Uma outra inovação é o facto de Irene Lisboa ter trazido para a literatura juvenil um tipo de texto também pouco comum, mais exigente do ponto de vista sintático, semântico, simbólico e, no dizer de José Régio, poético, por isso se dizia em cima que dificilmente este público o conseguirá compreender a este nível mais profundo, porém o contacto com textos de qualidade que não estupidificam e acrescentam e despertam outros mundos é indiscutível, por ser formativo e útil na provocação da criatividade e do sentido crítico.
“O caixão de cristal” apresenta um discurso sobre o destino. As sensações aí descritas conjugam a dicotomia entre a vida e a morte, o prazer e a dor, ou seja, os temas clássicos da literatura.
Este conto começa por fazer alusão a um fragmento do texto Sapatinhos de cetim, de Adolfo Coelho. A narradora apresenta-nos um falso dever: “Eu devia ser lançado ao mar num caixão de cristal”. Este fragmento justifica esta narrativa. Contudo, a narradora socorre-se de outras referências, nomeadamente da literatura oral. Há aqui a alusão a um saber prévio, a um saber popular ancestral transmitido de geração em geração: “Tanta coisa sabia, de ter ouvido em terra, aos serões”. Observamos ainda, para além da voz da narradora e do saber tradicional oral, a voz do murmúrio: “Pelo mar fora, sempre de olhos abertos, um murmurinho muito doce me embala”, que é um murmúrio que se vê e sente mais do que se ouve.
São apresentados os seguintes pontos que resumem esta narrativa: 1) O medo entra-lhe no coração com o seu inexplicável “impulso salvador”: “Entrou-me o medo no coração (…) um impulso salvador e escapei-me”; 2) a narradora encontra-se num estado de encantamento permanente: “Nada me cansava; tudo maravilhas”; 3) dá ênfase à especificidade das figuras que despertam o olhar: ”Três donzelas de luto estavam ao mirante”; 4) conjeturas feitas pela narradora através de interrogações, tais como: “Teriam madrasta ou pai tirano. Sequestradas dos seus namorados, quem sabe?”; 5) a impossibilidade de estabelecer uma relação amorosa, dada a incomunicabilidade em que a narradora se encontra, e isso causa-lhe dor: “(…) e eu que o não podia ouvir! Que pensar daquilo tudo? Se ao menos me pudesse erguer!” Esta impossibilidade de estabelecer uma relação com o objeto amoroso causa dor: “Senti tamanha dor que dos olhos começou a correr o pranto”. Esta situação leva-nos ao ponto 6, início do processo de rutura com a vida: “Empalideceram-me as mãos e cerrei os olhos. Amor! ainda me dizia, já devagar, o coração”.
Por último, a narradora apresenta-nos uma expressão: “Eu era oferecida em holocausto à lua”, em que se observa uma forte intensidade dramática, pois a personagem principal é oferecida, como que em sacrifício, à lua, mas é oferecida pelas nereidas já morta, ou seja: “(…) as adoradoras do pálido astro”, isto é, a lua. Esta morte é consentida, o que nos leva a concluir que foi uma morte maravilhosa, pois a personagem não deixa de sentir: “Senti-me descair, descair”, até ao fundo do mar, sendo a morte encarada aqui como um estado eterno: “ (…) e lá fiquei”.
A lua é aqui vencida pelo mar apesar de aquela ser encarada como uma “maravilha inigualável”. Podemos levantar algumas hipóteses que justificam a recusa da lua e a aceitação do mar. A narradora recusou a lua porque: 1) esta representa a falsidade, a sua luz é apenas o reflexo da luz do sol; 2) representa instabilidade: tem quatro fases, muda de forma constantemente; 3) representa o feminino e a narradora procura o masculino, isto é, o ser amado. E escolhe o mar porque: 1) este simboliza a dinâmica da vida, isto é: apesar desta morte, a narradora continua a viver eternamente; 2) este simboliza a incerteza, a dúvida, a indecisão, o renascimento. São posições em que a narradora/personagem/autora sente que pode evoluir, crescer, pois a dúvida leva ao conhecimento, ao constante desassossego.
Finalmente, falta-nos fazer alusão a uma expressão que aparece seis vezes ao longo deste conto: “Quem jamais teve esta sensação?” É uma interrogação que nos aparece com uma função mais de espanto do que de incerteza. A narradora pretende talvez manter viva, ao longo do texto, através da repetição, como se de uma reza se tratasse, a focalização do leitor na morte: morte/dor, mas também morte/prazer. Este pedido, súplica, relação com o leitor faz-se de forma muito íntima, mesmo sentimental: há o vivido pela personagem, mas também há a relação com o leitor para que este não deixe de observar e sentir o que está a ser contado.
Obras consultadas:
Chevalier, J. & Gheebrant (1994). Dicionário dos símbolos. Lisboa: Editorial Teorema.
Florêncio, V. (1994). A literatura para crianças e jovens em Irene Lisboa. Porto: Edições Asa.
Lisboa, Irene (1984). Uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma. Porto: Edições Figueirinha.
Relâmpago (2012/13). Revista de poesia – Irene Lisboa, n.º 31, 32.
Jorge da Cunha
(Mestre em Ciências da Educação,
Professor de Português,
Antropólogo)