Pesquisa: Apontamentos sobre as sete obras essenciais de Irene Lisboa
11-11-2019 às 19:09
Um dia e outro dia... – Diário de uma mulher e Outono havias de vir latente e triste (poesia). Estes livros foram inicialmente editados em 1936/1937. No primeiro, a autora reuniu um conjunto enorme de textos. Os poemas aparecem organizados como se o livro fosse um diário: um dia, outro dia, outro dia... Mas este não é pois um tempo definido, é um tempo falso, sem horas, dias, meses ou anos. Já a segunda obra reúne um conjunto menor de textos, todos com um título diferente. O título transmite-nos o ritmo da vida, como aliás o anterior, mas agora com as suas tristezas e os seus disfarces. É o tempo simbolizando a vida e contrapondo-se à morte. É o ir e vir sentido e observado pelo sujeito poético, muito próprio dos textos intimistas, textos estes que caracterizam toda a obra de Irene Lisboa. Os textos publicados nestes dois volumes, quando Irene já estava acima dos 40 anos, demonstram uma autora madura, muito diferente daquela que dez anos antes, em 1926, tinha escrito e publicado 13 contarelos, pequenos contos dedicados à “gente nova”. Irene Lisboa oferece-nos nestes dois volumes uma poesia completamente diferente da que as mulheres poetas fizeram até então. Versos curtos ou mais longos, mas sem rima, porque o verso deve transmitir a pulsação oral da frase, às vezes terminando em palavras translineadas, porque nem sempre o fim do verso termina no fim da linha; explora temas pouco convencionais, afastando da sua poesia “toda a chocha literatice feminina dominante até essa data” (José Gomes Ferreira). O que é que encontramos aqui? Perguntaram alguns. É prosa? É poesia? Irene Lisboa responde-lhes no início do segundo livro: “Ao que vos parecer verso chamai verso e ao resto chamai prosa”. Nesta expressão, Irene define-se como escritora: nada está acabado, tudo são fragmentos... Irene renega a delimitação canónica entre verso e prosa, bem como a superioridade do romance em relação a outros subgéneros, mas tudo regido por objetivos bem definidos, a partir de uma ordem bem estabelecida.
Solidão – Notas do punho de uma mulher. Foi editado pela primeira vez em 1939. Foi muito bem acolhido pela crítica de então, mas pouco lido pelo público em geral. Só teria algum sucesso editorial aquando da segunda edição em 1966. É um livro formado por um conjunto de notas breves, como se fosse um diário, mas faltando-lhe a datação inicial, por isso, podemos chamar-lhe um livro de memórias, breves memórias que a autora foi compondo ao longo de alguns anos, em que reflete sobre a “paisagem dos sentimentos”, ou seja, a paisagem da solidão que desperta o choro e a queixa tão presentes nesta obra. Expressões como “(...) mas eu lamento-me, quero-me lamentar...” e “Ando com tanta vontade de chorar...” são exemplo disso. Os textos apresentam-se num estilo entre o retrato e a crónica, utilizando vários recursos: a autobiografia de um tempo já bem afastado, sofrido, impossibilitando-a do amor; as ausências; as recordações; a análise e autoanálise; a inquietação ou desassossego... Depois, temos um conjunto de palavras que nos põem perante uma certa dualidade entre a morte (mundo interior) e a vida (mundo exterior). Ora, aqui podemos entender “Solidão” como “fechamento”, sendo este objetivado a partir das palavras “prisão”, “corpo” e “casa”: “Minha casa fria, minha casa fria...” Mais uma vez, estamos na presença de um discurso cujo ritmo é pautado pela memória e pensamento, aproximando-se da oralidade. Como nos diz Paula Morão no prefácio à última edição da obra: Irene Lisboa em Solidão “Dá-nos a ler páginas inquietas e subtis, quotidianas e universais – como se espera de uma obra moderna, de uma obra de todos os tempos”.
Assim como Solidão, que, como vimos, se aproxima do diário, a mesma temática intimista, o estilo e a característica fragmentária de Solidão têm continuação em Apontamentos (1943) e em Solidão – II (1966). São livros de cunho autobiográfico em que uma voz feminina fala de si e do seu íntimo. Predomina o tema da solidão e da queixa pela ausência do amor, o que não impede a autora de um olhar vasto do mundo. Centremo-nos um pouco nos dois últimos, apenas por uma questão de egoísmo, ou mesmo vaidade... pois fala, em várias passagens, do concelho de Arruda.
Solidão II. Irene fala-nos brevemente da Murzinheira, mas as poucas linhas deixam a certeza de que é aqui que sempre regressa simbolicamente, pois a infância é o leito onde sempre voltamos; fala-nos ainda de Arranhó, ou utilizando a sua antonomásia, “a terra da pedra” e de outros locais desta freguesia. Por fim, é-nos apresentada uma das suas meias-irmãs, a Vitória, de quem fala com carinho, deixando no ar a pena que sentia de a não ter conhecido mais cedo: “Que parecidas somos! Aliás não admira: irmãs... Ela do campo, eu da cidade. E tão tarde nos conhecemos!”
Apontamentos. A autora apresenta-nos um texto chamado “Férias no campo”. Este texto é um regresso aos lugares da infância. Terá sido uma “crónica” cujos factos foram recolhidos durante uma estada de Irene em Monfalim, pensa-se que numa casa alugada, no início dos anos 40 do século XX, que a levou a deambular por casais, serras e festas de toda a região: aqui fala de Arranhó e das Festas d’ Ajuda e d’ Arruda, e descreve de forma magistral a subida ao Moinho do Céu, e tudo o que vê a partir dali. Faz ainda um retrato extremamente afetivo do “José Pipa, o mais honrado de todos os Pipas havidos e a haver”.
Começa uma vida. Esta é uma novela publicada em 1940. Irene Lisboa escreveu-a já com 48 anos. Dado tratar-se de uma narrativa em que a autora se socorre da memória para contar a história da protagonista enquanto criança, que pode ser a própria Irene, nunca ficaremos a saber se o que aqui é tratado é ficção ou realidade (possivelmente as duas). O certo é que alguns factos parecem coincidir com a biografia da autora. Começa uma vida é um texto narrado na primeira pessoa. Ao longo da leitura apercebemo-nos de que a narradora tem dificuldade em manter a objetividade dos factos, sendo contaminada pelos efeitos emocionais que esses factos provocaram na vida da autora. Mas não é só a história da protagonista que é narrada. Fica aqui também um retrato de uma certa sociedade na transição do século XIX para o XX por estas zonas rurais, em que o proprietário das terras era temido e respeitado, mantendo com o assalariado relações de senhor e servo, muito comum nesta época na burguesia rural, como é simbolicamente aqui representado pelo pai da protagonista. A narrativa termina de uma forma inesperada, quando a protagonista entra na adolescência, ficando o leitor com a sensação de que nem tudo foi dito. E, neste caso, mais havia para dizer, pois a autora retoma a história de Começa uma vida na novela seguinte.
Voltar atrás para quê? Esta obra foi publicado já em 1956 e retoma, portanto, a história de Começa uma vida, contudo agora a narrativa aparece contada na terceira pessoa (Açucena tem 13 anos no início da história e 18 no fim). A distância que a autora quer imprimir utilizando a terceira pessoa nem sempre é conseguida devido à carga emotiva que os acontecimentos ainda lhe provocam. Também aqui é traçado um retrato fiel da sociedade de então (início do século XX), a partir de uma casa rural, nesta zona entre Arruda e Sobral, onde figurava um regime patriarcal. É considerada, como a anterior, uma obra autobiográfica, muito embora contaminada por aquela ficção de que a memória não consegue escapar passadas quase cinco décadas entre o vivido e a ação de contar da narradora, apesar de dizer que “Tudo se passou tal e qual”. Açucena sofre na pele as ações maldosas da madrasta e da mãe desta, mais diretamente durante os dois anos em que, tirada do colégio, viveu abandonada na quinta da madrinha usurpada pelo pai, que pouco a pouco foi dominado por aquelas que, no dizer da protagonista, eram umas cadelas, adventícias... que tudo inventaram para a tirar do caminho; e indiretamente, até ao momento em que Açucena se vê privada de tudo, até da madrinha que foi raptada da casa de Lisboa pelas cadelas, juntamente com todos os haveres, poucos, que ainda não tinham sido roubados a esta velha que a criou como filha. Açucena, ao longo destes anos, tudo sofreu, tudo perdeu, menos as palavras, instrumentos da memória, do pensamento, do vivido... Depois, a mãe, de novo a idealização da mãe, como na novela anterior e em muitos outros textos. Começa uma vida e Voltar atrás para quê? são livros fundamentais na obra de Irene Lisboa, e, como diz Paula Morão, “é uma pedra de toque imprescindível no contexto da literatura portuguesa dos anos 50 – e de todos os tempos”.
Jorge da Cunha
(Mestre em Ciências da Educação,
Professor de Português, Antropólogo)
Solidão – Notas do punho de uma mulher. Foi editado pela primeira vez em 1939. Foi muito bem acolhido pela crítica de então, mas pouco lido pelo público em geral. Só teria algum sucesso editorial aquando da segunda edição em 1966. É um livro formado por um conjunto de notas breves, como se fosse um diário, mas faltando-lhe a datação inicial, por isso, podemos chamar-lhe um livro de memórias, breves memórias que a autora foi compondo ao longo de alguns anos, em que reflete sobre a “paisagem dos sentimentos”, ou seja, a paisagem da solidão que desperta o choro e a queixa tão presentes nesta obra. Expressões como “(...) mas eu lamento-me, quero-me lamentar...” e “Ando com tanta vontade de chorar...” são exemplo disso. Os textos apresentam-se num estilo entre o retrato e a crónica, utilizando vários recursos: a autobiografia de um tempo já bem afastado, sofrido, impossibilitando-a do amor; as ausências; as recordações; a análise e autoanálise; a inquietação ou desassossego... Depois, temos um conjunto de palavras que nos põem perante uma certa dualidade entre a morte (mundo interior) e a vida (mundo exterior). Ora, aqui podemos entender “Solidão” como “fechamento”, sendo este objetivado a partir das palavras “prisão”, “corpo” e “casa”: “Minha casa fria, minha casa fria...” Mais uma vez, estamos na presença de um discurso cujo ritmo é pautado pela memória e pensamento, aproximando-se da oralidade. Como nos diz Paula Morão no prefácio à última edição da obra: Irene Lisboa em Solidão “Dá-nos a ler páginas inquietas e subtis, quotidianas e universais – como se espera de uma obra moderna, de uma obra de todos os tempos”.
Assim como Solidão, que, como vimos, se aproxima do diário, a mesma temática intimista, o estilo e a característica fragmentária de Solidão têm continuação em Apontamentos (1943) e em Solidão – II (1966). São livros de cunho autobiográfico em que uma voz feminina fala de si e do seu íntimo. Predomina o tema da solidão e da queixa pela ausência do amor, o que não impede a autora de um olhar vasto do mundo. Centremo-nos um pouco nos dois últimos, apenas por uma questão de egoísmo, ou mesmo vaidade... pois fala, em várias passagens, do concelho de Arruda.
Solidão II. Irene fala-nos brevemente da Murzinheira, mas as poucas linhas deixam a certeza de que é aqui que sempre regressa simbolicamente, pois a infância é o leito onde sempre voltamos; fala-nos ainda de Arranhó, ou utilizando a sua antonomásia, “a terra da pedra” e de outros locais desta freguesia. Por fim, é-nos apresentada uma das suas meias-irmãs, a Vitória, de quem fala com carinho, deixando no ar a pena que sentia de a não ter conhecido mais cedo: “Que parecidas somos! Aliás não admira: irmãs... Ela do campo, eu da cidade. E tão tarde nos conhecemos!”
Apontamentos. A autora apresenta-nos um texto chamado “Férias no campo”. Este texto é um regresso aos lugares da infância. Terá sido uma “crónica” cujos factos foram recolhidos durante uma estada de Irene em Monfalim, pensa-se que numa casa alugada, no início dos anos 40 do século XX, que a levou a deambular por casais, serras e festas de toda a região: aqui fala de Arranhó e das Festas d’ Ajuda e d’ Arruda, e descreve de forma magistral a subida ao Moinho do Céu, e tudo o que vê a partir dali. Faz ainda um retrato extremamente afetivo do “José Pipa, o mais honrado de todos os Pipas havidos e a haver”.
Começa uma vida. Esta é uma novela publicada em 1940. Irene Lisboa escreveu-a já com 48 anos. Dado tratar-se de uma narrativa em que a autora se socorre da memória para contar a história da protagonista enquanto criança, que pode ser a própria Irene, nunca ficaremos a saber se o que aqui é tratado é ficção ou realidade (possivelmente as duas). O certo é que alguns factos parecem coincidir com a biografia da autora. Começa uma vida é um texto narrado na primeira pessoa. Ao longo da leitura apercebemo-nos de que a narradora tem dificuldade em manter a objetividade dos factos, sendo contaminada pelos efeitos emocionais que esses factos provocaram na vida da autora. Mas não é só a história da protagonista que é narrada. Fica aqui também um retrato de uma certa sociedade na transição do século XIX para o XX por estas zonas rurais, em que o proprietário das terras era temido e respeitado, mantendo com o assalariado relações de senhor e servo, muito comum nesta época na burguesia rural, como é simbolicamente aqui representado pelo pai da protagonista. A narrativa termina de uma forma inesperada, quando a protagonista entra na adolescência, ficando o leitor com a sensação de que nem tudo foi dito. E, neste caso, mais havia para dizer, pois a autora retoma a história de Começa uma vida na novela seguinte.
Voltar atrás para quê? Esta obra foi publicado já em 1956 e retoma, portanto, a história de Começa uma vida, contudo agora a narrativa aparece contada na terceira pessoa (Açucena tem 13 anos no início da história e 18 no fim). A distância que a autora quer imprimir utilizando a terceira pessoa nem sempre é conseguida devido à carga emotiva que os acontecimentos ainda lhe provocam. Também aqui é traçado um retrato fiel da sociedade de então (início do século XX), a partir de uma casa rural, nesta zona entre Arruda e Sobral, onde figurava um regime patriarcal. É considerada, como a anterior, uma obra autobiográfica, muito embora contaminada por aquela ficção de que a memória não consegue escapar passadas quase cinco décadas entre o vivido e a ação de contar da narradora, apesar de dizer que “Tudo se passou tal e qual”. Açucena sofre na pele as ações maldosas da madrasta e da mãe desta, mais diretamente durante os dois anos em que, tirada do colégio, viveu abandonada na quinta da madrinha usurpada pelo pai, que pouco a pouco foi dominado por aquelas que, no dizer da protagonista, eram umas cadelas, adventícias... que tudo inventaram para a tirar do caminho; e indiretamente, até ao momento em que Açucena se vê privada de tudo, até da madrinha que foi raptada da casa de Lisboa pelas cadelas, juntamente com todos os haveres, poucos, que ainda não tinham sido roubados a esta velha que a criou como filha. Açucena, ao longo destes anos, tudo sofreu, tudo perdeu, menos as palavras, instrumentos da memória, do pensamento, do vivido... Depois, a mãe, de novo a idealização da mãe, como na novela anterior e em muitos outros textos. Começa uma vida e Voltar atrás para quê? são livros fundamentais na obra de Irene Lisboa, e, como diz Paula Morão, “é uma pedra de toque imprescindível no contexto da literatura portuguesa dos anos 50 – e de todos os tempos”.
Jorge da Cunha
(Mestre em Ciências da Educação,
Professor de Português, Antropólogo)